No coração da Bahia, entre águas sagradas, rezas intensas e abraços carregados de amor, Preta Gil viveu seus últimos momentos cercada de tudo o que mais valorizava: fé, família, amigos e música. Sua partida não foi apenas o adeus a uma cantora — foi o encerramento de um ciclo de luz, força e conexão com o divino.

Nascida em 8 de agosto de 1974 no Rio de Janeiro, filha do ícone Gilberto Gil e da empresária Sandra Gadelha, Preta carregava no nome uma herança ancestral. Criada na Bahia, cresceu entre tambores, vozes poderosas e o calor de uma das famílias mais emblemáticas da música brasileira. Ela era mais que filha, irmã ou mãe: era o elo que ligava gerações, que mantinha viva a chama artística e afetiva dos Gil.

A música esteve em seu sangue desde sempre, mas sua trajetória foi feita de descobertas. Aos 15 anos, a dor da perda do irmão Pedro em um acidente a desviou temporariamente dos palcos, levando-a aos bastidores como diretora de videoclipes. Foi só aos 28 anos que o chamado de cantar se tornou impossível de ignorar. Com o álbum “Preta Porter”, lançado em 2003, conquistou o público com sua autenticidade e voz potente — e nunca mais parou. Foram seis álbuns, blocos de carnaval arrastando multidões e momentos inesquecíveis no palco, como o famoso Bloco da Preta que arrastou mais de meio milhão de foliões no Rio.

Mas Preta era mais que artista: era presença. Foi apresentadora, atriz, referência de corpo livre, mulher preta, forte e de opinião. Tinha um brilho que encantava e uma espiritualidade que guiava seus passos.

Sua fé era profunda e multifacetada. Filha de Oxum no candomblé, era também devota de Nossa Senhora Aparecida e de Santa Dulce dos Pobres. Visitava com frequência igrejas como a do Rosário dos Pretos, no Pelourinho, e fazia questão de agradecer a vida, principalmente após sua remissão do câncer, celebrada em missa especial com amigos e familiares. Foi no terreiro do Gantois, em Salvador, que iniciou sua jornada no candomblé, guiada por seu babalorixá, Célio de Omolu, e lá permaneceu conectada até o fim.

Ao longo da luta contra o câncer, que começou em 2023, Preta mostrou uma resiliência emocionante. Enfrentou cirurgias longas, tratamentos pesados e internações prolongadas. E mesmo nos momentos mais difíceis, não perdeu a fé. Em entrevista ao Roda Viva, revelou que a doença a aproximou ainda mais da espiritualidade e que não sentia mais angústia em relação à morte.

Entre esses momentos difíceis, um desejo simples a sustentava: voltar ao mar da Baía de Todos os Santos. Ela sonhava com aquele mergulho enquanto ainda estava no hospital. E conseguiu realizá-lo. Em um dia de sol, cercada de amigos e familiares, mergulhou nas águas sagradas, buscando renovação, axé e leveza. Era mais que um banho de mar — era um ritual de recomeço, uma despedida sem saber que seria a última.

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O gesto foi simbólico e poderoso. Filha das águas, filha de Oxum, Preta se reconectava com sua essência. Foi também nesse período que frequentou o santuário de Santa Dulce dos Pobres, fazendo doações generosas, realizando bazares beneficentes e organizando homenagens — como a missa em memória de Paulo Gustavo, seu grande amigo. Seu legado de solidariedade ultrapassou a arte: Preta ajudou a transformar vidas, inclusive com recursos para a construção do Hospital dos Olhos e a compra de medicamentos.

Nos seus últimos meses, nunca esteve sozinha. Gominho, seu melhor amigo, largou tudo para cuidar dela. Ju de Paula, influenciadora e “filha do coração”, permaneceu ao seu lado nos Estados Unidos durante tratamentos experimentais. Carolina Dieckmann, Ivete Sangalo e tantos outros amigos formavam uma rede de amor inabalável.

Ivete, aliás, teve papel fundamental na vida de Preta. Foi ela quem a incentivou a cantar, quem ajudou financeiramente em momentos difíceis, e quem, com um empurrãozinho certeiro, aproximou Preta de Carolina Dieckmann, criando uma das amizades mais bonitas do meio artístico. Uma amizade que começou com ciúmes e se transformou em irmandade de alma.

Preta Gil era um universo inteiro. Sua fé se expressava em rezas, em música, em sorrisos e até na dor. Sua força se via nos palcos, mas também nos bastidores, nos abraços, nas conversas e nos silêncios. Sua despedida, marcada por celebrações e memórias de amor, deixa o Brasil em luto — mas também profundamente grato por ter vivido com ela.

Como escreveu seu pai, Gilberto Gil, na música “Drão”, “a morte não causa dor, a morte é semente”. Preta Gil partiu, mas sua luz germina em cada um que ouviu sua voz, que se inspirou em sua coragem, que se viu refletido em sua luta. Preta agora vive com Oxum, entre as águas e os cantos eternos.